logo-1-b
Previous slide
Next slide

URIAH HEEP — PORTO ALEGRE, 10 DE ABRIL DE 2025

| Uriah Heep no Opinião. Foto: Rafael Cony |

Uriah Heep é o principal algoz num dos clássicos da literatura inglesa, o romance “David Copperfield” (1850), escrito por Charles Dickens (1812-1870). Ele é um puxa-saco mentiroso e enganador, se faz de humilde e amigável, para roubar tudo o que pode de cada um que cruza na sua frente. A pergunta é: o que motivaria alguém a buscar inspiração num canalha desprezível como esse? Segundo o guitarrista Mick Box, o nome de Dickens estava em todos os lugares no início do ano de 1970, pois, naqueles dias, os ingleses recordavam o centenário de sua morte. Assim, graças a efeméride e, envoltos na gravação do álbum de estreia, “Very ‘Eavy… Very ‘Humble”, o Spice (como a banda era chamada), por sugestão de seu vocalista à época, David Byron, muda o nome para Uriah Heep.

De todo modo, como grupo musical, o Uriah Heep nunca foi desprezível. Longe disso, por conseguinte, ao raiar do novo século, muitas vezes é injustamente esquecido pela literatura do rock. Pioneiros em fundir o hard rock com o progressivo, entre outras infusões, a banda nunca alcançou o mesmo destaque de alguns coirmãos como Led Zeppelin, Deep Purple e Black Sabbath. Por outro lado, a exemplo de sua influência no cenário posterior, grupos como Iron Maiden —, que plagiou descaradamente o riff de “I Hear Voices” em “The Red And The Black”, de “The Book of Souls (2015) — e, o Blind Guardian, que regravou “The Wizard”, entre tantas outras bandas e artistas catequizadas pela sua influência, denotam a relevância da obra construída pelo Heep. Com mais de 40 milhões de álbuns vendidos ao redor do mundo, alguns LPs caíram na minha mão, tornando seus discos — principalmente a fase com David Byron — ligação direta com minha memória afetiva, tornando-a uma das bandas preferidas da minha adolescência.

E, como fã, até mesmo trabalhos contestados pela crítica, como “Conquest” (1980) — uma das minhas capas favoritas —, um álbum que ouvi centenas de vezes, décadas depois, certamente foi mal-entendido, assim como outras obras distintas. Um destaque está no bem-sucedido “Abominog” (1982) — mesmo com uma capa tenebrosa —, alinhado até a medula com o pop metal daquele período, trabalho que abriu às portas para uma nova geração de fãs.

Um possível fator responsável por alguma descrença no valor artístico do espólio da banda talvez esteja na contínua rotação de integrantes. Ao longo de 55 anos, mais de 20 músicos já passaram pelas fileiras do grupo, entre eles, membros da formação clássica — David ByronKen HensleyGary Thain e Lee Kerslake, além de nomes como Trevor BolderJohn Lawton e até Nigel Olson (baterista de Elton John, e único vivo entre todos os citados). Toda essa atividade produziu 25 álbuns de estúdio, uma trajetória longeva e repleta de camadas. Vale frisar: a presente formação que chega até Porto Alegre nesta quinta-feira (10) gravou os seis últimos álbuns de estúdio, tornando-se o mais estável de todos os quintetos em qualquer época.

Afora a necessidade de rótulo ou classificação, a música criada nessas mais de cinco décadas — principalmente nos anos 1970 — foi definidora para incrustar o Uriah Heep como patrimônio imaterial do rock. Aí está o ponto: a atual turnê — The Magician’s Farewell — reproduz com fidelidade o DNA dos melhores momentos dessa linhagem, com foco no período mais reverenciado e no espírito desse tempo, trazendo até nós uma apresentação fidedigna aos propósitos invocados. Assim, no palco do Opinião temos: o sobrevivente Mick Box (77 anos, guitarra e vocais de apoio, único membro da formação original e presente desde sua criação); Bernie Shaw (68 anos, voz, há 39 anos vocalista do Heep); Phil Lanzon (75 anos, um dos principais compositores do quinteto, teclados e vocais de apoio); Dave Rimmer (56 anos, baixo e vocais de apoio, substituto de Trevor Bolder, morto em 2013) e Russell Gilbrook (60 anos, bateria). 

Foto: Rafael Cony

Depois de apresentações em três capitais da América do Sul — Montevideo (4), Buenos Aires (5), Santiago (6), pela sétima vez os ingleses desembarcam no Brasil (o debute foi em 1989, no tour do álbum Raging Silence). Antes da capital gaúcha, o Rio de Janeiro (9) recebeu o primeiro show do atual tour. Porto Alegre já esteve no caminho do grupo outras duas vezes, 2014, no Teatro do Bourbon Country, e 2004, no mesmo local do evento de hoje, o Opinião.

________________________________________

O SHOW

Antes de tudo, é necessário lembrar que pós Enchente de 2024, o Rio Grande do Sul novamente vive uma certa normalidade e, desse modo, os show internacionais voltam a circular por aqui. O Aeroporto Salgado Filho, por exemplo, ficou quase seis meses sem receber voos, devido aos danos causados pela catástrofe climática, como esquecer esse limbo? Com isso, celebremos o dia de hoje. 

Com um público em torno de 1000 pessoas (informação da assessoria do Opinião), a terceira apresentação do Uriah Heep na capital gaúcha começa com “Grazed By Heaven“, de “Living the Dream” (2019), um F5 no setlist, atualizando o público com um fruto da safra mais recente. Gilbrook bate forte e, na companhia de Rimmer, formam uma cozinha pujante que conduz a rodada inicial num ritmo alucinante. É perceptível, Bernie Shaw nasceu para cantar no Heep. Ele tem o estilo, uma voz que representa ‘todas as vozes do espólio’ e capricha nos acessórios, vide o coldre preso a perna direita onde guarda o microfone. “Save Me Tonight“, faixa de abertura do elogiado “Chaos and Colour” (2023), retrata o alinhamento do quinteto e define o tom pesado dos primeiros minutos. Logo depois, “Overload“, de “Wake the Sleeper” (2008), mantém a tocha acesa na senda das produções mais recentes, prova de que eles continuam criando e apostando no aqui e agora. Com um permanente sorriso no rosto, Mick Box está em ótima forma, enquanto Phil Lanzon, com poses e gestos de um cientista maluco, há quase quatro décadas compõe e toca as teclas no grupo, se debruçando sobre seu instrumento ao estilo dos grandes musicistas do gênero (ele também é escritor, com dois livros lançados).

A comparação com o Deep Purple foi algo que sempre os assombrou, por mais que o Uriah Heep tenha pegado essa bola redonda, mas, na linha de passe, chutou a pelota com um efeito diferente. É o que penso quando ouço “Shadows of Grief“, de “Look At Yourself” (1971), onde Lanzon brilha com sua técnica e atitude, batendo na liturgia do prog-rock e na dramaticidade dos teclados, uma volta aos velhos tempos. O sarrafo segue nas alturas em “Stealing“, narrativa da vida pregressa de um fora-da-lei em fuga (é uma das minhas letras favoritas). Pinçada de “Sweet Freedom” (1973), essa bate forte nos detratores que julgam o Heep como um Purple de segunda linha, pois, lançado à frente de “Burn” (1974), clássico da era MK3, o Heep mostra que o trânsito rock and soul já corria das veias do grupo antes de Glenn Hughes adicionar esse mesmo tempero no caldeirão púrpura. O público esquenta e canta em uníssono os vocalizes: “uh, uh, uh, uh, ah, ah, ahhhh“.  

Foto: Rafael Cony

Hurricane“, na linha do metal melódico, mais uma de “Chaos & Colour”, escrita por Gilbrook, é um momento de baixa no set, pois há dezenas de temas superiores na discografia deles, inclusive na história recente. Qualquer equívoco é soterrado quando voltamos para a Terra Média através da magia evocada pelo dedilhado no violão de aço em “The Wizard“. Antes do primeiro acorde ser disparado, Bernie aponta para seu colega e diz: “Ladies and gentlemen, my best friend, Mick Box“. O sorridente vocalista, com um dos braços em volta dos ombros do guitarrista (vocês não acham que ele está a lata do Jerry Garcia, do Grateful Dead?), apregoa a mítica do mestre eremita, o vagabundo ancião contador de histórias. Poderia ser o mago Gandalf, de “O Senhor dos Anéis”, mas essa criatura da letra tem uma mitologia própria, o que a torna ainda mais original. É uma das canções assinatura do Heep. Tocada sem a guitarra — no trecho mais pesado da música — como ouvimos no álbum “Demons and Wizards” (1972), a versão do Opinião faz jus ao espírito acústico das baladas progressivas.  

Sweet Lorraine” possui um blend característico: mistura uma melodia pop/grudenta com a estranheza do sintetizador Moog, instrumento ‘riffador’ e solista — sacada de mestre do saudoso Ken Hensley, um dos mentores intelectuais da primeira encarnação —, escolha responsável por criar uma identidade singular ao quinteto. Pena que o teclado estava num volume mais baixo, fator que nos furta de absorver ao vivo o principal holograma desse tema. Desejaria ouvir na sequência “Return to Fantasy”, faixa título do álbum de 1975, idêntica a linhagem de ‘Lorraine’ — com seus ‘teclados filme de terror’ — mas não foi o que aconteceu. Nada é perfeito.

Antes de tocar “Free ‘n’ Easy“, de “Innocent Victim” (1977), o único aparte no set advindo do espólio de John Lawton, Bernie faz um discurso exaltando o rock feito nos anos 1970. E quem discordaria dele nessa noite de outono em Porto Alegre? Tocada mais rápida, é chumbo grosso disparado em alta octanagem, diferente da versão original. Repaginada para a turnê, vejo o head banging rolando bem em frente ao palco. No centro de tudo, Mick Box é pura pose e alegria. 

A ópera rock “The Magician’s Birthday” traz o argumento que motivou essa turnê de aniversário e de uma suposta despedida das grandes giras. Estamos falando do indiscutível ápice da noite. Retorno ao espírito dos anos 1970, ao longo de seus mais de 10 minutos, a guitarra avança em pista livre como um automóvel potente em BR de asfalto bom. Foi minha porta de entrada com o Uriah Heep, o ano era 1985, e ouvi ela pela primeira vez por volta da 1h da manhã numa noite de inverno durante um programa de rádio, o Cultura Rock, da Cultura FM (Santa Maria/ RS). Gravada numa fita cassete, esse registro me abasteceu por um tempo. Trata-se de um blues rock, mas também há um flerte com o progressivo. Na gravação original, o tom satírico no backing do refrão: “Happy birthday to you/ Happy birthday to magician/ Happy birthday to you“, a voz de apoio, lembra o yodel e os scats de Thijs van Leer em “Hocus Pocus”, clássico do grupo holandês Focus, gravado meses antes do álbum do Heep. Ao vivo, Bernie e Phil reconfiguram as vozes nesse trecho sem perder o brilho original.  

Á medida em que a música avança, entre vais e vens e sobreposições, a fantasmagoria dos teclados soam sinistras. Esse é o momento máximo de Mick no show, no longo solo, acompanhado apenas de Gilbrook, com Bernie, Dave e Phil ganhando um refresco. O guitarrista se diverte, abusa dos maneirismos, afunda o pé no pedal wah-wah e brinca com a plateia. Ele abusa dos tiques e maneirismos, toca como se manipulasse poções mágicas sobre o braço da guitarra, abendiçoando o público feito uma figura budística. Após o zigue-zague no longo trecho instrumental, as pontas são amarradas quando o baixo e o teclado retornam ao palco, com Bernie em estado de graça proclamando o amor como tábua de salvação. É um épico, “The Magician’s Birthday” reverbera sua curvatura, propósitos e estilo até hoje. 

O sentimento de poder no riff de Mick Box continua evidente em “Gypsy“, precursora do heavy metal (o Iron Maiden nasceu de músicas como essa), relato de um jovem apaixonado por uma cigana, um dos destaques de “Very ‘Eavy Very ‘Umble” (1970). No solo de Phil Lanzon, uma assombrosa tempestade dos teclados trovoa como um pesadelo. Em dado momento, Dave e Mick se escondem, cada um em laterais opostas do palco e, quando voltam à linha de frente, tocam os punhos de leve numa espécie de ‘brodagem supergênios ativar’. Bernie, no centro da canção, entrega a alma para o público e passa aquela sensação de que ninguém cumpriria essa missão como ele. O Uriah Heep não brinca em serviço, até jogada ensaiada faz parte do mise-en-scène deles.

July Morning” é grandiosa e insólita. Além de clássico absoluto, joia reluzente no álbum “Look At Yorself” e no “Uriah Heep Live” (1973), o tema ainda inspirou um ato de resistência dos búlgaros contra os soviéticos durante os anos 1980, e acabou dando o pontapé inicial num festival chamado Julaya. Todos os anos, no final de junho, pessoas de toda a Bulgária viajam para a costa do Mar Negro para acompanhar o nascimento do sol no primeiro dia de julho. Daí, envoltos num tardio espírito hippie, muitos desses viajantes acampam em barracas, se juntam em volta de fogueiras e acredite: “July Morning” é a principal trilha-sonora do encontro, cantada em coro como hino oficial dessa celebração. A transcendência da música escrita por David Byron e Ken Hensley, exalta a esperança do amor como símbolo da felicidade, da esperança de um recomeço e a consequente libertação dessa conquista. É vísivel que aqui temos outro pico da noite. A banda sai do palco, se despede, mas todos sabemos que haverá um ato final, é o que o público suplica. 

Gilbrook é o primeiro a voltar, começa fazendo uma marcação do bumbo e entrega o jogo do que vem pela frente. Tematicamente, “Sunrise” se une ao tema anterior, é uma das peças-chave para entender o som da banda inglesa: camada de vozes, órgão hammond saltando faíscas e as dinâmicas da guitarra. No início, a voz de Bernie soa cristalina, para logo depois sermos soterrados pelo volume ensurdecedor da banda, um foguete que nos leva até a apoteose de um show de rock and roll. 

O círculo se fecha em “Easy Livin’“, que há exatos 50 anos, fez parte da trilha-sonora de “Um dia de Cão” (1975), filme estrelado por Al Pacino, ganhador do Oscar de Melhor Roteiro Original (ela pode ser ouvida bem no começo do filme). A inclusão comprova de como o Uriah Heep estava na crista da onda naquela década. A força poética desse tour de force é o desfecho dos sonhos para nos despedirmos do show. Afinal, frente as agruras da existência, quem não deseja uma vida descomplicada ao lado da pessoa amada?

Em uma de suas falas, Bernie Shaw deu a entender que a banda está compondo músicas para um novo álbum, sem data de lançamento, para alegria dos fãs ainda interessados em material inédito. O fato é que parte da primeira fila incluía alguns garotos com camisetas da banda (de todas as fases), cantando inclusive os temas gravados nos dois últimos discos. Será que ainda há esperança de o Uriah Heep continuar por aí? 

Depois de Porto Alegre, também poderão se despedir do grupo inglês os fãs de São Paulo (11), Curitiba (12) e Belo Horizonte (13). Em julho, The Magician’s Farewell segue seu curso pela Europa, com shows agendados até o final do ano.

CoberturaGrings Tours | Quando o Som Bate no PeitoReviewMárcio GringsFotosRafael ConyAgradecimento: Paulo Finatto (Opinião Produtora) pelo credenciamento, suporte e assessoria.

Foto: Rafael Cony

By Márcio Grings

Marcadores: Uriah Heep

Fonte: gringstours

Compartilhe